Opinião: No país da Copa do Mundo, o futuro é (ultra)passado

 

*Adriana Saluceste

No meio das areias quentes, sob o sol escaldante, ergue-se um oásis repleto de árvores, com suprimento subterrâneo de água fresca, um verdadeiro refúgio no deserto. Assim parecem ser, à primeira vista, alguns dos países do Oriente Médio, entre eles o Catar, sede da Copa do Mundo de 2022. Considerado um dos países mais ricos de todo o planeta, o PIB chega aos US$ 175,8 milhões. Mas, ainda que pareça solo fértil, também residem nessas areias algumas das contradições mais significativas do mundo.

Divulgada como a Copa mais tecnológica de todos os tempos, o evento precisou ser transferido para o fim do ano devido às altas temperaturas que se abatem sobre o Catar durante os meses de junho e julho, quando a competição costuma ser realizada. Nos estádios, alta tecnologia para ajudar a enfrentar o calor que, mesmo em novembro, ainda será um dos grandes desafios para os amantes de futebol. Túneis de vento e construções inteligentes são apenas duas das ferramentas escolhidas para lidar com o problema.

Enquanto jogadores contarão com camisetas inteligentes e um sistema automatizado do já conhecido video assistant referee (VAR), do lado de fora desse universo inovador, criado para encantar e vender o país como o destino do futuro, há uma infinidade de passado que o Catar se recusa a deixar para trás.

Mulheres, por exemplo, ainda têm seus direitos extremamente limitados por lá. Em maio de 2022, a mexicana Paola Schietekat, de 27 anos, acabou sendo condenada a cem chibatadas e sete anos de prisão depois de denunciar um estupro às autoridades. Acusada de sexo extraconjugal, ela foi apenas mais uma das muitas vítimas de situações como essa no país, que ainda trata mulheres como cidadãos de segunda categoria. Homossexuais também não são bem-vindos no Catar. Com base em uma interpretação da lei islâmica - chamada de Sharia -, a nação proíbe relações entre pessoas do mesmo sexo, o que pode levar a até três anos de prisão.

Imigrantes que desejam trabalhar no país também podem ter problemas, eventualmente, com o que eles chamam de “kafala”. Esse sistema, que é inspirado na Sharia, é uma exigência de que qualquer pessoa estrangeira tenha uma espécie de “patrocinador”, papel que normalmente é assumido pelo empregador. Assim, o trabalhador acaba ficando submetido às vontades e decisões de quem o emprega. Não pode, por exemplo, trocar de emprego, alugar um imóvel ou mesmo sair do país sem a autorização do patrão, que fica com o passaporte do imigrante e pode, inclusive, pedir sua prisão.

Durante a Copa do Mundo, todos os turistas que decidirem acompanhar os jogos de perto precisarão obedecer a essas e outras regras, muito mais rígidas do que a da maior parte dos países, atualmente. Apesar do calor, mulheres precisarão cobrir os ombros e os joelhos se não quiserem ter problemas com as autoridades. Além disso, nada daquela cervejinha para assistir às partidas ou comemorar os resultados. É proibido comercializar e consumir álcool em locais públicos. Mas, nos hotéis internacionais, os turistas poderão driblar essa regra.

O petróleo, que responde, junto ao gás natural, por pelo menos 50% do PIB nacional, pode ter trazido ao Catar um rio fértil de riquezas em dólares, euros e outras moedas cobiçadas no mercado internacional. Não é à toa que, de acordo com a Global Finance, o país ocupa hoje o quarto lugar entre os mais ricos do mundo, levando em consideração o PIB per capita. E toda essa riqueza é capaz de comprar a Copa do Mundo mais inovadora já realizada. Para ser o destino do futuro, entretanto, o país ainda precisa chegar ao presente.

*Adriana Saluceste é diretora de Tecnologia e Operações da Tecnobank.

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