Convivemos com bustos e estátuas como quem espera o ônibus na fila e nem repara em quem está na sua frente ou atrás de você. Os rostos passam, alguns até raspam nossos ombros em suas marchas apressadas, e também seguimos rumo aos nossos compromissos sem fixar a atenção em quase nada. Nas praças, nos parques, em frente a prédios públicos, nos saguões das repartições públicas, nos pátios das universidades, hospitais, estádios de futebol, nos auditórios e teatros, na entrada de algumas cidades, lá estão eles e elas, com seu bronze oxidado, escurecido pelo tempo, as imagens dos personagens que deveriam ser importantes para os que decidiram investir tempo e recursos neles e cuja memória desejavam compartilhar com o futuro, em um esforço de registro permanente, de suspensão do tempo e de fixação dos valores que justificaram a escolha daquela pessoa ou daquele fato.
Há bustos e estátuas que são frutos da vaidade e muitas que são frutos da mistificação; há as que são frutos da propaganda oficial ou do desejo de agradar, como recompensa ou esperança de favores; há as que buscam reconhecer ou desagravar e as que buscam cumprir promessas ou destacar momentos justificadores de mudanças. “Lembrai-vos de 35!”, diz uma dessas esculturas, com um soldado com arma em punho. As homenagens são lembranças e lembretes, papéis com revelações importantes guardadas no meio de livros que empoeiram nas estantes.
Mas então o tempo passa, a cidade muda, as memórias se esfumam, outras se formam ou aquelas mesmas se rearranjam, como as pedrinhas nos caleidoscópios. Algumas das personas retratadas tornam-se personagens de outras narrativas, novas facetas de suas histórias são reveladas, novas fontes são descobertas, novas perguntas são feitas, cujas respostas reposicionam aqueles rostos e aqueles corpos esculpidos em poses majestosas e a visão sobre eles e elas muda de tom. Muitas vezes, o tom de drama se torna raiva, e o herói, desafeto. A estátua que homenageia vira ofensa e acinte.
Os italianos que chegaram aos EUA nos anos vinte queriam ter um elemento em comum com o novo país, fazer parte. Além da pizza e da tarantela, encontraram no genovês Cristóvão Colombo uma interface com aquela terra. E mandaram erigir estátuas do descobridor. Um século depois, muitas delas foram derrubadas porque Colombo não era mais o italiano que ajudou milhões de europeus a construir histórias em outro continente, mas o facínora que iniciou o extermínio dos povos originários. Uma estátua com pedestal de barro…
Homenageamos quem parece merecer um registro para a posteridade, por ter contribuído ou representando algo importante para nós. É nossa narrativa que queremos reforçar quando escolhemos alguém como especial. Getúlio foi o maior algoz dos comunistas na História do Brasil, um ditador sanguinário, mas hoje muitos o incensam por ter “lutado pelos trabalhadores”. Muitos atacam o projeto de privatização dos Correios, tornado empresa pública, com capital controlado pela União, em 1969, no auge da ditadura militar.
Para muitos paulistas, os bandeirantes desbravaram os sertões, descobriram riquezas e contribuíram decisivamente para a formação territorial brasileira; para muitos paulistas, os bandeirantes eram predadores de índios, destruidores de quilombos e devastadores ambientais. Para a primeira versão deles, mereciam uma homenagem, como a de Victor Brecheret ou Júlio Guerra. Para a segunda versão deles, tinta vermelha na homenagem de Victor Brecheret ou pneus queimando na homenagem de Júlio Guerra.
A História não é memória e derrubar estátuas e bustos não “destroem" a História. História se produz questionando o passado a partir das indagações sempre novas do presente. Ninguém está imune a perder a pose ou cair do cavalo. O importante não é jogar lenha na fogueira. O importante é prestar atenção ao que nos rodeia e não vivermos como quem espera o ônibus na fila e nem repara em quem está na sua frente ou atrás de você. Assim podemos perder o bonde da História e acabarmos, em plena democracia, tão duramente conquistada, dando vivas a quem acha que torturador é herói da Pátria.
* Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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@profdanielmedeiros
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