A França tem chamado a atenção do mundo nas últimas semanas por conta do movimento “antivacina”. Assistimos com certa perplexidade desde notícias de pessoas que falsificam atestados (pagam de €250 a €500 pelo atestado falso) até depredação de postos de saúde (inundações e incêndios).
Mesmo que mais da metade da população já esteja com o ciclo da imunização completo, esse movimento representa uma ameaça. Ele tem acontecido como forma de contraposição às políticas públicas que o governo francês decretou recentemente, como o caso do chamado passe sanitário, comprovante que passou a ser exigido (desde 21 de julho) para acesso a vários lugares na França (museus, cinemas e demais locais culturais).
Essas medidas do governo francês se mostram necessárias diante da ameaça de uma quarta onda de covid-19 no país, sobretudo por conta da nova variante delta que tem sido encontrada em mais de 80% das novas contaminações. Os dados recentes mostram que a França saltou de uma média de 2 mil casos diários para mais de 20 mil. Esse aumento alarmante não seria motivo suficiente para uma tomada de consciência da população acerca da importância da vacina no país?
O fato é que esse movimento antivacina atrai para as manifestações não apenas os céticos em relação à eficácia da vacina, como também pessoas que já foram vacinadas, mas que não têm concordado com as restrições que o governo de Emmanuel Macron tem imposto aos franceses.
Radicais ou não, logo após o anúncio das novas medidas restritivas houve uma corrida pelo agendamento da vacinação contra covid-19. Foram registrados nas primeiras 48 horas mais de 2 milhões de agendamentos. Isso nos leva à ideia a ser discutida aqui: sem políticas públicas e campanhas eficientes, não conseguiremos resultados expressivos no combate à pandemia.
Podemos dizer que esse movimento antivacina já se fez presente na história do Brasil. Vale lembrar que um dos episódios mais famosos foi a Revolta da Vacina, em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. No dia 5 de novembro foi criada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória. E dos dias 10 a 16 de novembro de 1904, aconteceram na capital carioca conflitos entre os manifestantes e a polícia/exército. Ao todo foram 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos, conforme dados do Centro Cultural do Ministério da Saúde.
Paralelo a isso, ocorria também uma série de despejos por conta do projeto de reurbanização encabeçado pelo prefeito do Rio de Janeiro, o engenheiro Pereira Passos, a pedido do Presidente Rodrigues Alves (alargamento de ruas, fim dos cortiços e grandes obras públicas). Essas obras obrigaram as camadas mais pobres da população a deixarem, contra a sua vontade, seus casebres e cortiços, dando início ao movimento de ocupação nos morros que aumentou o desenvolvimento das favelas.
Todos esses acontecimentos deixaram a população muito insatisfeita e isso culminou na Revolta da Vacina. O movimento antivacina acabou arrebanhando os insatisfeitos com o governo e promovendo conflitos que trouxeram muitos prejuízos econômicos, sociais e humanos. O que ocorreu na Revolta da Vacina foi impulsionado por questões políticas alheias à própria ideia da vacina.
Os protestos na França e no mundo liderados pelo movimento logo começarão a questionar as outras vacinas e, com isso, doenças erradicadas podem voltar, como o surto de sarampo. Precisamos entender que vacina é um pacto social: abrimos mão de pretensos direitos para obter vantagens em ordens sociais. Por isso, vivemos em tribos desde o paleolítico até agora, em sociedades.
O governo precisa fazer sua parte: campanhas para acabar com essa “escolha” de vacinas, e promover a conscientização de que é preciso tomar a segunda dose e, mais do que qualquer outra coisa, é preciso vacinar a população. Passamos por outros momentos em que ações assim do governo foram importantes, como em relação aos genéricos e à conscientização sobre a campanha de imunização contra a H1N1.
As campanhas de vacinação fazem parte da constituição do Brasil. Para muitos, a primeira relação com o Estado é por meio da vacinação. Precisamos, pelo bem das próximas gerações, voltar à nossa cultura da imunização, tendo o SUS como baluarte dessa resistência contra os movimentos antivacina.
*Álvaro Fonseca Duarte, historiador, mestre em História pela Universidade Federal do Paraná, é consultor pedagógico, professor e criador do podcast Ensaios da Ágora.
*Antonio Djalma Braga Junior, filósofo e historiador, doutor em Filosofia, é professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo.